Nuno Nebeker

A11y Talks Porto - As Pessoas Fazem a Mudança

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Há alguns anos que me apresento como “accessibility advocate” (defensor da acessibilidade). Estou profundamente envolvido em comunidades da cegueira online (OurBlind), tenho formação da Deque, trabalhei como grupo DivIn da Siemens em Portugal e tento sempre ir mais longe para construir interfaces e sistemas inclusivos que empoderem as pessoas que os usam (ler o meu artigo A Coisinha Não Fez A Coisa!).

Com tudo isso, e como cidadão da Internet, são poucas e valiosas as minhas ligações à minha comunidade local de profissionais de acessibilidade digital. Quando a Patrícia Dias começou a juntar pessoas, no LinkedIn, para um encontro no Porto, aproveitei logo a oportunidade.

Todas as opiniões que partilho aqui são minhas e não pretendo representar aquelas de organizações e pessoas envolvidas. Os meus resumos de opiniões de outros estão sujeitos a má interpretação da minha parte.

Uma Mesa Redonda e Porque a Comida Faz Diferença

Sou fã de espaços online, especialmente baseados em texto, pelo seu potencial para equilibrar o jogo em termos de acessibilidade. Por exemplo, os eventos semanais no servidor Discord OurBlind são à volta de voz, mas oferecem transcrição e texto-para-áudio - mesmo um espaço orientado à cegueira consegue adaptar-se a membros surdos e aos que não falam.

É possível organizar salas separadas, discussões de um-para-um e saltar entre tópicos em eventos online, mas é mais fácil fazer isso em pessoa. Ao mesmo tempo, quando o foco é local, é bom estar no local. A comida também é um ótimo marco cultural, especialmente quando cada participante traz alguma coisa para partilhar.

A discussão em pessoa aconteceu num espaço de trabalho partilhado em Gaia, o que encaixa com os nossos objetivos: juntar pessoas que trabalham em volta da acessibilidade com diferentes perspetivas num espaço comum e informal.

O vídeo está no YouTube (menos de duas horas de duração) e estarão lá também conteúdos novos. Eu sou o homem de pele muito clara à esquerda, de cabelo rapado e barba comprida.

As Minhas Ideias sobre Tópicos Abordados

Pode-se ver a conversa todo no vídeo acima, mas gostava de abordar alguns tópicos e partilhar as minhas ideias. Adoro ouvir-me falar, por isso há muito disso no vídeo, mas vou acrescentar context aqui.

Lei Europeia de Acessibilidade

Vejam só, já estamos em Junho de 2025 e a Lei Europeia de Acessibilidade (“European Accessibility Act” ou EAA) vai entrar em vigor. Enquanto o Hino da Alegria aumenta em volume no fundo e um Lince Ibérico salta pelo meio de um anel de estrelas amarelas frente a um céu azul, pensemos um poco sobre o que isso significa. Discutimos impactos para utilizadores, profissionais de acessibilidade e empresas. Falámos das nossas preocupações e dúvidas.

Com novas regulamentações e requisitos legais vêm novas questões. O essencial, pelo que percebo, é que um conjunto de serviços disponíveis ao consumidor tem de estar em conformidade com as atuais Diretrizes de Acessibilidade para Conteúdo Web (“Web Accessibility Guidelines”) (em Português do Brasil) a nível AA. É favor não usar esta frase como base para decisões de responsabilidade legal. É aí que entram as questões e não sinto que possa dizer que o grupo chegou a uma conclusão decisiva.

Quanto a impactos, as ideias principais foram que uns ajudam os outros, mas que procurar cumprimento da lei não vai tornar a web verdadeiramente acessível. Algumas empresas já estão na linha da frente da acessibilidade, outras atrasam-se e outras ainda usam soluções de encaixe fácil. Estas abordagens escolhem-se com base na motivação. Quando se tenta levar um animal do campo a algum lado, pode-se usar uma cenoura ou um pau. Os que vão atrás da cenoura sempre souberam que ela estava lá e não precisam de regulamentação como motivação. A EAA é um pau e, tal como na metáfora, não consegue motivar, apenas obrigar a cumprir.

Ao subir a fasquia em várias áreas de negócio ao consumidor, é provável vermos um maior interesse na acessibilidade, pressão do mercado para especialistas e, para quem ficou a conhecer a cenoura, um shift-left (prioritização antecipada). A perspetiva sobre o futuro foi positiva no geral, mas identificámos vários desafios. Aliás, vamos aprofundar alguns.

Eu Sou Especialista?

Discutimos a palavra “especialista” para descobrir em quem se pode confiar em termos de acessibilidade digital e como se chega aí. O consenso foi muito positivo chegando-se a, passo a parafrasear, “qualquer um pode ser especialista desde que queira aprender”. Assumi uma posição muito menos flexível e acho que vale a pena explicá-la.

Tenho vários advogados na família; ainda mais gente com curso de Direito. Existe uma diferença muito clara entre os dois: pode-se ter um curso de Direito, mas não se pode exercer advocacia sem estar inscrito na Ordem dos Advogados. Do mesmo modo, eu tenho um Mestrado em Engenharia Electrotécnica, mas não sou Engenheiro: não posso assinar projetos de instalações elétricas, porque não sou membro da Ordem dos Engenheiros.

Estarei a complicar ou a formalizar demais? O nosso contrato social garante que as nossas pontes são seguras e os nosso contratos fiáveis através de um processo de cima para baixo. O estado empossa organizações para certificar profissionais nas suas áreas.

Então qual é o organismo acreditador empossado pelo Estado para acessibilidade digital e quais são as certificações? Como não procuro essa certificação podem-me escapar pormenores. Posto isto, algumas referências são o programa “Trusted Tester” do " Department of Homeland Security (DHS)" dos Estados Unidos (link em Inglês), o Curso de Auditores e Facilitadores em Acessibilidade Web) em Portugal e, como organização profissional não reconhecida como Order, o Certified Professional in Accessibility Core Competencies (CPACC) da International Association od Accessibility Professionals (IAAP).

Mas que enxurrada de referências, não é? Vamos respirar fundo e rever. Se trabalho em engenharia de software sem ser Engenheiro, porque é que estou tão preocupado com isto? É culpa dos advogados da minha família. Aprendi que há diferenças grandes entre palavras pequenas no que toca à Lei. Num ramo cada vez mais associado à função pública, a conformidade e cumprimento de requisitos, a promessas legais e lutas no tribunal acho que não me posso arriscar a usar as palavras erradas. Acho que ninguém pode.

Isso não quer dizer que não tenha nada a oferecer ou que não saiba do que estou a falar. Significa que não estou disposto a vender demais e entregar de menos.

“Shift Left”

Vou juntar alguns tópicos aqui. Falámos de design systems, do papel dos designers para lá da especificação e de overlays de acessibilidade como soluções fáceis. Creio que se chegou a um consenso sobre o valor de fazer “shift left”, ou seja de adiantar as considerações sobre acessibilidade para uma fase mais inicial do projeto. Segundo a Microsoft (link em Inglês, traduzido), “resolver um bug mais tarde, na fase de pós-produção, custa 30 vezes mais do que quando se resolve na fase de desenvolvimento”. O dinheiro fala muito alto ou pelo menos é o que me dizem.

Se o objetivo é desenho bom, experiência de utilizador boa, confiança quanto à conformidade, inclusão de verdade, concordamos todos que o caminho para lá chegar leva estes objetivos em mente desde o início.

Levantei a questão de que quem trabalha em software e para a web já aprendeu esta lição sobre localização e internacionalização. Quem for brincar com desenvolvimento Android ou Windows vai adicionar strings (texto) a ficheiros de recursos para serem localizados para os mercados de chegada. Quem faz isso para software livre pode acabar a preparar um projeto em sistemas de gestão de localização como WebLate ou CrowdIn.

Se percebemos isto para a localização e internacionalização, devemos mesmo trabalhar a acessibilidade desde o início, certo? Muitas das motivações são as mesmas como aumentar o Total addresseable market.

Curiosidade: a abreviatura a11y (link em Inglês) segue a linha de l18n and i10n(link em Inglês) significando respetivamente localização e internacionalização.

Se Pudéssemos Automatizar os Utilizadores…

Desenhar e testar para acessibilidade é difícil e leva tempo. Também precisa de muito conhecimento e experiência. Não seria incrível se pudéssemos automatizar o processo? Adrian Roselli escreveu um resumo a explicar porque não (link em Inglês) melhor do que eu conseguiria, mas posso abordar alguns dos pontos que discutimos.

Primeiro, as ferramentas automáticas ajudam e a automação é necessária para o desenvolvimento de software moderno orientado a CI/CD. Não se quer gastar tempo humano nas regressões mais básicas. Produtos grandes e caros como Axe DevTools e pequenos e grátis como Pa11y, bem como as ferramentas de desenvolvimento dos navegadores são interessantes aqui.

Posto isto, não há software que resolva a Diretriz 1.1.1 por nós, porque não conhece o contexto ou a intenção do conteúdo. O mesmo conteúdo pode ser descrito como “homem de idade abraça pessoas na rua” ou “candidato Presidencial Marcelo Rebelo de Sousa interage com cidadão na baixa do Porto”. Que outras descrições haveria para este vídeo do dos arquivos da RTP?

Fora esta questão óbvia, os utilizadores interagem com os produtos de uma miríade de formas. Utilizadores de leitor de ecrã aprendem uma variedade de atalhos de teclado e podem se preocupar menos com as nossas regiões e mais com os títulos do que imaginávamos. Ou podem usar o rato muito mais do que esperávamos. Os nossos esforços para facilitar a vida destes utilizadores podem afetar negativamente os utilizadores de controlo por voz. Declaração de interesse: colaborei no Web Accessibility Survey que citei.

Como é que os profissionais de acessibilidade podem ter estes problemas desconhecidos em consideração? Temos que começar por aceitar que há nuances humanas na utilização que implicam nuances humanas no desenvolvimento e nos testes. Ao aceitar que há coisas que não sabemos e, de forma mais importante, que não sabemos que não sabemos, podemos avançar para os testes com utilizadores. Priorizaremos de início, claro.

Também podemos manter estar ideia ao longo do ciclo de vida do produto, monitorizando ativamente e adaptando às necessidades e experiências dos utilizadores. Se tivermos sorte, eles queixam-se dos problemas. Se não, eles trocam-nos pela concorrência. Se tivermos muito azar, os utilizadores sentem-se presos durante um certo tempo e não se queixam, mas depois desaparecem todos.

Esse último pedaço soa demais a pau. A cenoura que queremos é que os utilizadores falem e partilhem opiniões. Produtos acessíveis tornam-se conhecidos e ganham cota de mercado. “Número fica grande” é um bom argumento a levar-se a decisores.

Conclusões e Próximos Passos

Se nos preocupamos com a diversidade, temos que nos preocupar com a diversidade de opiniões e perspetivas entre profissionais. A acessibilidade digital, como indústria, tem um grande potencial de impacto social e económico, ao afetar tantas atividades económicas. Todos colocamos coisas diferentes sobre a mesa: bolachas, experiências de vida com uma comunidade deficiente em particular, bolo, responsabilidade com design systems, petiscos, foco em cibersegurança…

Se nos preocupamos com o nosso impacto, temos de aprender em conjunto e uns com os outros. Fazer isto dentro de uma comunidade local abre muitas portas, dá aso a muitas oportunidades. Estou ansioso por outras atividades em pessoa e digitais com um foco local e impacto global.